Mosaico

terça-feira, 25 de outubro de 2016

Eleonora

Eleonora tinha 85 anos. Com corriqueiros problemas de saúde, ia com dificuldade para sua cadeira de balanço todos os dias. Já não via a hora passar e a vida tornou-se demasiadamente tediosa. 

Para passar o tempo tentava sintonizar o rádio em alguma estação que lhe agradasse, mesmo assim o tempo se movimentava com a barriga no chão. Não gostava muito da TV, não havia nada que prestasse e odiava ter que mexer no controle remoto, se batia com a quantidade de botões que daquela geringonça. Lia. Revisitava um livro antigo repetidas vezes, mas as vezes cansava de segura-lo.

Então balançava para frente e para trás em sua cadeira. Os movimentos embalavam lembranças de uma vida sofrida. Filhos que lhe esqueceram, netos que não se importavam. A colheita de suas eras não foi das melhores. Seu temperamento expelia as pessoas mais próximas. 

A escuridão alcançava-lhe os olhos cada vez mais. As reclamações de uma vida cresciam e não ajudavam o tempo passar. Entre uma visita e outra contava sempre os mesmos problemas: as dores do corpo, a impossibilidade da independência, a falta de coisas que deixou para fazer depois. Esse depois que nunca chegou. Jamais chegaria. 

E assim, como uma vela que já está no fim, a chama começou a se esvaziar. A luz de si era pequena demais. A escuridão lhe alcançava. Com ela, todos os ressentimentos. A morte e a maldade do mundo lhe faziam companhia. 

Um dia, um neto distraído, lhe trouxe um recém-nascido. Eleonora levantou a sobrancelha e olhou atentamente aquela coisinha tão sensível. O menino bocejou e se esticou no meio do cobertor. 

Então, ela pode segurar a criança no colo e gargalhou o sabor da vida. Gargalhou de alegria. E a chama de sua vela brilhou com mais intensidade. Esqueceu-se da morte e da maldade do mundo. Lembrou que a vida persiste, e persiste em algo tão frágil. Sentiu que viu um milagre. Nesse mundo tão roto, há beleza. 


Respirou a felicidade mais uma vez.

terça-feira, 18 de outubro de 2016

Faltas

Faltas. Marcio convivia com muitos espaços dentro de si.
Procurava preencher com palavras de sucesso. De auto-confinça. E de tempos em tempos sentia o sabor da frustração. Um dia decidiu que venceria e fez de tudo para ser alguém na vida. De tempos em tempos se deparava com o muro da mediocridade. Olhava para a parede de tijolos tão iguais e se reconheceu ali ao lado de uma multidão igualmente insignificante, participante apenas de uma máquina universal que giraria sem sentido para lugar nenhum.

O gosto de vazio apenas aumentava. Marcio continuava olhando ao redor e observava tudo o que não tinha. Tudo o que queria ter. E quanto mais fixava em suas carências, mais espaços havia em seu paladar.

Passou a andar sem sentido, sem rumo, frustrado. Até que tropeçou no asfalto. Bateu a cabeça no chão e sentiu uma verdadeira dor. Sentou-se no meio fio. E viu ali uma flor, e observou a beleza da flor. Viu como ela se vestia tão belamente, e pensou que nenhum um rei da terra já havia se vestido de maneira tão elegante.

Olhou pra cima, enquanto as nuvens dançavam devagar, e viu uma revoada. Não sabia dizer a espécie dos pássaros. Fechou os olhos e ouviu os seus cantos, percebeu a alegria daqueles pequenos bichinhos. Pensou que eles nem trabalhavam, nem plantavam ou colhiam, apenas se divertiam com seus rodopios celestes.

Marcio pouco a pouco foi sentindo os espaços dentro de si ficando pequenos. Passou a ser mais grato a sua vida. Começou a dar mais atenção àquilo que tinha do que não tinha. Passou a se preocupar menos em ser alguém e se incomodar menos com o terror da mediocridade. Passou a olhar as pequenas coisas, as grandes belezas da natureza que se escondiam em seres tão insignificantes.

Andava mais devagar, mas em certa direção. Pensou que o sentido era mais importante que a velocidade.